Bordados

 

 

 

 

Imagem-tema da 37a Reunião Nacional da ANPEd, feito especialmente pela professora e bordadeira Olinda Evangelista.

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Título: Um mundo para conhecer, 2015

Técnica: Bordado em linha de algodão sobre seda, cetim e retalhos de tecido de algodão.

PROVOCAÇÃO: A VIDA EM BORDADOS

Olinda Evangelista

 

Um dos componentes mais magistrais, para mim, do ato de bordar é o da provocação. Provocação que a vida, e o que dela lembramos, nos faz para ser impressa com linhas em panos. As cores respondem à provocação; mostram nossas preferências e os desvarios de cada um. Uma terra laranja, um mar vermelho, um céu roxo, uma noite de dia. Entram na roda os sentimentos: uma alegria, uma injustiça. Bordar não é, como se vê, retratar. Bordar será sempre o resultado de uma provocação da vida e do modo como nossos olhos, emoção e compreensão a veem e em panos e linhas a recria. Não se pode racionalizar esse processo totalmente e tampouco resulta da pura intuição.

O delicado exercício de escolher panos, linhas, cores, agulhas é profundamente reflexivo. É preciso apertar os tecidos, olhá-los de perto, de longe, muitas vezes, às vezes só, às vezes com outros, até que na mesa fiquem descansando inumeráveis retalhos, desalinhados. Olhamos as linhas, suas cores, nuances, brilho, textura. A agulha é submetida ao teste dos dedos: são grossas, finas, curtas, longas, ásperas, lisas. Esse movimento exprime o que nos vai pela cabeça.

A criação do bordado não pressupõe maestria no desenho, nos pontos. Qualquer paninho pode se transformar numa beleza humana. O bordado provoca o bordador a pôr mais um ponto, mais uma cor, mais uma textura. A desmontar, a reordenar, a inserir elementos, a retirar. É um acontecimento inexplicável: o bordado nos provoca a parar quando está pronto ou a abandoná-lo, esquecê-lo ou retirá-lo da gaveta onde dormia. O bordado responderá sempre a uma provocação interna, responderá sempre à história que a bordadeira ou o bordador viveu – infantil, alegre, triste, revolucionária.

Sendo resultado de tantas provocações, seu destino final é o de provocar. Os olhos, as mãos, a emoção, o desejo, o pensamento dos que o veem e precisam mesmo tocá-lo – e que, às vezes, correm a bordar. É fantástica a beleza humana expressa no bordado!

O bordado que fiz para a 37.ª Reunião Anual da ANPEd – Um mundo para conhecer –  atendeu a um honroso convite da Comissão Organizadora. O fato de realizar-se em Florianópolis permitiu que as provocações ilhoas lhe dessem vida. A bernunça – ou bernúncia –, a bruxa e o monstro marinho de Cascaes, o surfista, as algas, os peixes, as baleias, a renda, as gaivotas, os pescadores, os parapentes, o sol – onipresentes – constituem a vida e a magia da ilha. A despeito das graves questões sociais que a atingem, o mar é fértil. Talvez por isso possamos pensar que pessoas, livros e conhecimento científico desse vasto universo social estão com ele em plena harmonia.

O bordado está em minha vida e me encanto com essa beleza autêntica.

 

 

BORDAR É UM ENCANTO

Olinda Evangelista

 

Há mais de dez anos bordo sobre retalhos, mas nunca escrevi sobre isso. Não imagino como explicar meu bordado ou como falar sobre ele, pois o vejo como simples expressão de vida e exercício de fruição sincera.

Bordar é momento de libertar a imaginação, a cor, a textura que posso encontrar em panos, linhas e pontos. Entro em contato com minha história, muito particularmente com memórias infantis. Minha origem interiorana e rural dá o sentido inintencional aos meus bordados.

São recorrentes árvores, florezinhas, capim, passarinhos, casinhas, montanhas, sol, nuvens, chuva, rios, pintinhos, galos. Há um aroma do campo, romantizado, bucólico, nessa mistura que me remete a uma infância vivida no sítio ou perto dele. Aparecem os casamentos na roça, os interiores das casas com fogões à lenha, bancos, vasinhos, gatos, galinhas e abóboras. Aparecem também as cenas maternas, as frases ditas por minha mãe mineira. De certo modo, os bordados que assomam à minha cabeça registram episódios da vida dela que ouvi ou vivi quando criança e jovem: crochetando, lavando roupas, cozinhando, indo à cidade.

Meus bordados são também um lugar de gratidão à escola, ao livro, aos professores, ao conhecimento. Minha trajetória escolar começou aos sete anos e aos 15, em 1970, ingressei na Escola Normal, em Londrina (PR). Entre 1970 e 2015 – 45 anos, durante os quais cheguei ao pós-doc – a escola entrou em minha vida de outro modo: primeiro como professora, depois como pesquisadora. Em muitos de meus bordados, o livro, o conhecimento, a escola, a professora estão presentes. Neles aparecem referências à luz que o saber irradia sobre o mundo, que nos permite vê-lo e talvez entendê-lo em suas múltiplas e complexas determinações: velas, lamparinas, sol, estrelas.

Há 25 anos moro na praia do Campeche, cidade de Florianópolis (SC), mas só recentemente o mar e sua exuberância apareceram em meus panos e linhas. Às vezes livros e leitores aparecem no mar. Quando mudei para Florianópolis, em 1991, conheci o fantástico bordado sobre retalhos de Dona Maria Celeste que tematiza as tradições africanas na ilha – até hoje me fascina e é grande inspiração.

Como muitas mulheres de minha geração, aprendi com minha mãe a bordar e a costurar roupinhas de boneca. Na escola também aprendi a bordar, nas aulas de Trabalhos Manuais. Igual a tantas mulheres, o trabalho me afastou do bordado e da costura. Mas não pertence apenas à mulher a arte do bordado. Homens bordam muito: Bispo do Rosário, Leonilson e João Cândido são exemplos. Paulo Luiz de Oliveira é um bordador com quem tenho compartilhado belíssimos encontros entre linhas e agulhas.

Depois de muitos, muitos, anos afastada dos paninhos, caí na provocação do bordado, em 2004, em Portugal, terra de indescritíveis criações. Lá encontrei revistas espanholas de riscos e pontos, tradicionais no Brasil, e vi muitas exposições de lenços dos namorados. Os lenços, graciosos, coloridos e com trovas de amor, me provocaram. Cedi à tentação, comprei linhas e linhos, recuperei os pontos básicos da infância – ponto atrás, caseado, cheio, correntinha – e saí bordando. Ao voltar de Portugal comecei a lidar com panos e linhas num grupo de mulheres, Respigar, a convite de Sonia Beltrame.

Mais tarde, conheci as arpilleras chilenas, marcadas profundamente pela violência da ditadura de Pinochet, os bordados peruanos, ambos com retalhos, e os bordados equatorianos. Num dos encontros do Respigar, conheci os bordados com retalhos de uma senhorinha, anônima para mim, de Porto Alegre. Meu fascínio foi completo. Nesse ano, 2005, fui paraninfa de uma turma de licenciandas em Pedagogia e bordei meu primeiro pano para elas, transformado em cartão.

Acredito piamente que a beleza deve ser compartilhada; a sua fruição nos humaniza, nos torna maiores. O bordado, essa criação humana, precisa ser visto e admirado, por isso procuro formas de mostrá-lo. Colaborei na organização de exposições coletivas, em Florianópolis, Curitiba (PR) e São Paulo (SP), organizei livros de bordados com outros amantes do bordado, procuro conhecer os que se dedicam a ele, ensino, participo da Roda de Bordado no Campeche e, em 2014, fiz uma exposição de meus bordados em Florianópolis.

Nessa trajetória de dez anos uma mudança considero mais importante, além da variação temática. Quando comecei a bordar usava paninhos estampados, com desenhos miúdos. De certa forma, sinalizavam o sentido que queria imprimir às imagens. Um palpite sobre tecidos de Nini Beltrame levaram-me a repensar os retalhinhos. Hoje gosto mais de estampar os tecidos com meus bordados, enfeitá-los com pés de florzinhas, gatinhos, passarinhos… Parece que assim ficam mais graciosos e também engraçados. Engraçados de fato são os encontros entre mim e minha companheira de linhas e paninhos, Olga Durand, cuja firmeza no leme das viagens bordadas é admirável.

A poesia

Muitos de meus bordados nasceram da leitura de poemas. As frases poéticas suscitam imagens que são traduzidas em panos, linhas, cores e pontos, poucos. O poeta que mais bordei foi Manoel de Barros (1916-2014). Seu apreço pelo nada me deslumbrou. O bordado abaixo é da Maria Célia Marcondes de Moraes.

Poesia

 

Os sofás

Os sofás antiguinhos compõem uma boa parte de meus paninhos. Lembram os de plástico, coloridos, da casa de minha mãe. E trazem um pouco do idílio infantil, infelizmente perdido. Chamei essa série de Sofás Encantados. No primeiro bordado o hai kai é de Bashô (1644-1694). Os crochês são de Dona Lazinha, minha mãe, hoje com 93 anos. Este sofazinho bordei para Anabea Cerisara.

Sofás

A minha mãe

Minha mãe também é grande fonte de inspiração. Suas falas de mineira caipira soam musicais. Gosto de bordar cenas de sua vida, que vivi ou que a ouvi contar. D. Lazinha é um espetáculo à parte. Este bordado está na parede de sua sala.

Minha mãe

A escola

Escola, livro, conhecimento são meus companheiros de vida. Desde que entrei na escola, aos sete anos, até hoje, aos 61, não pude me afastar das questões que a envolve. Livros são recorrentes nos meus bordados e sempre vêm acompanhados de alguma luz, a luz que o saber irradia e nos permite ter. Iluminar o mundo, papel do livro, da escola, do conhecimento, do professor. Kátia Caiado encomendou esse bordado para capa de seu livro.

Escola

A água

O azul é recorrente em meus bordados, céu ou água. Inicialmente, a cor apareceu como o rio do interior, rural, do Paraná, estado onde nasci. Poucas vezes apareceu como céu chuvoso. Muito recentemente, tornou-se mar, o mar do Campeche, o mar de Florianópolis. Mas continua rio e céu. A imagem abaixo é da casa da Terezinha Cardoso e a frase da Olga Durand.

Água

O amor

O amor romântico, para-sempre-feliz, também é recorrente nos retalhos que bordo. Algo das princesas que ficou… Esse bordado fiz para os 40 anos de casamento de meus amigos Dolinha e Walter Schmidt.

Amor

A música

Fonte de criação inimaginável, a música abre um vasto campo de viagens.  Por mais que eu borde, nunca apanho a maravilha imensa de seus versos. Aqui está Dolores Duran na noite de seu bem. Ela agora enfeita as noites de Aníbal Brito.

Música

A arte

O desejo de bordar encontra fios em toda parte. Na arte, o gramado é vasto. Este bordado é uma espécie de releitura do cartaz de Djanira para a peça Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes e Tom Jobim, encenada no RJ em 1956. No fundo está a letra de Se todos fossem iguais a você, tema da peça. Fez parte da Exposição Bordando os Sete, em São Paulo. O quadro de Djanira encontra-se no Museu Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro (RJ). O bordado está em minha casa.

Arte

 

 

 

Florianópolis, agosto de 2015

Blog: http://palavrabordada.blogspot.com.br/

Página: http://gepeto.ced.ufsc.br/

E-mail: olindaevangelista35@hotmail.com

 

 

 

PARA APRECIAR BORDADOS:

PASSARINHO EU SEI DE COR

http://paginacultural.com.br/bordados-na-galeria-virtual/

BORDANDO OS SETE

http://paginacultural.com.br/bordando-os-sete/

BORDADOS DO BRASIL: A ARTE DE MILITÃO DOS SANTOS

http://paginacultural.com.br/bordados-do-brasil/

MULHERES DE OUTRORA, BORDADOS DE AGORA

http://paginacultural.com.br/mulheres-de-outrora/

NETOS E AVÓS: MEMÓRIAS DE BRINCADEIRAS

http://paginacultural.com.br/exposicao-de-bordados/

BLOG PALAVRA BORDADA – Olinda Evangelista, Florianópolis/SC

http://palavrabordada.blogspot.com.br/

MARIA CELESTE NEVES – Bordados, Florianópolis/SC

http://www.artedobrasil.com.br/maria_celeste.html

LENÇO DOS NAMORADOS – Portugal

http://www.aliancartesanal.pt/

ARPILLERAS – Chile

https://arpillerasdaresistencia.wordpress.com/catalogo/

ARPILLERAS DE MAMA QUILLA – Peru

http://mamaquillahuaycan.blogspot.com.br/2010/06/nuestras-arpilleras.html

MERCADO DE OTAVALO – Equador

http://posture.doonks.com/Otavalo-markt.html

AS TOALHAS BORDADAS POR JOÃO CÂNDIDO

http://www.patriamineira.com.br/imagens/img_noticias/215323020710_As_toalhas_bordadas_pelo_marinheiro_Joao_Candido_Felisberto,_lider_da_Revolta_da_Chibata.pdf

MUSEU BISPO DO ROSÁRIO – Rio de Janeiro/RJ

http://museubispodorosario.com/

MUSEU DO BORDADO – Belo Horizonte/MG

http://www.museudobordado.xpg.com.br/

PROJETO LEONILSON – São Paulo/SP

http://www.projetoleonilson.com.br/site.php

 

PARA APRECIAR A ILHA:

CONTOS E DESENHOS DE FRANKLIN CASCAES – Florianópolis/SC

http://www.manezinhodailha.com.br/Scripts/Manecascaes.htm

PORTAL DO BOI DE MAMÃO – Florianópolis/SC

http://www.manezinhodailha.com.br/subweb_portalboidemamao.htm

CULTURA, COSTUMES E TRADIÇÕES DA ILHA DE SC

http://www.manezinhodailha.com.br/

 

PARA APRECIAR LIVROS BORDADOS:

ALVES, Rubem. Os Três Reis. São Paulo, SP: Loyola, 2004.

ALVES, Rubem; BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A menina a gaiola e a bicicleta. Céu de passarinhos. São Paulo, SP: Companhia das Letrinhas, 1998.

AMADO, Jorge. A bola e o goleiro. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2008.

BARROS, Manoel de. Exercício de ser criança. São Paulo, SP: Salamandra, 1999.

BERNARDI JR, Hermes. Casa Botão. São Paulo, SP: DCL, 2007.

CATALÃO, Tetê. Brasília, cidade cidadã. Pirapora, MG: ICAD, s.d..

COLASANTI, Marina. A moça tecelã. São Paulo, SP: Global, 2004.

DUMONT, Ângela. Águas Emendadas. Rio de Janeiro, RJ: Moderna, 1998.

DUMONT, Ângela. Matizes. Rio de Janeiro, RJ: Moderna, 1998.

DUMONT, Sávia. ABC do São Francisco. Pirapora, MG: ICAD; Dimensão, 2004.

DUMONT, Sávia. Alberto, sonhos e alinhavos – a ousadia de ir além do chão. Pirapora, MG: ICAD, 2006.

DUMONT, Sávia. Anjos de Lelena. Pirapora, MG: ICAD, s.d..

DUMONT, Sávia. A rebelião das raposas. Pirapora, MG: ICAD; Dimensão, s.d..

EVANGELISTA, Olinda; DURAND, Olga. Netos e avós, memórias de brincadeiras. Maringá, Paraná: EDUEM, 2015. (Imagens disponíveis em: <http://palavrabordada.blogspot.com.br/search/label/Netos%20e%20Av%C3%B3s>)

EVANGELISTA, Olinda; FERREIRA, Jaci. Bordados do Brasil: a arte de Militão dos Santos. Maringá, Paraná: EDUEM, 2013. (Imagens disponíveis em: <http://palavrabordada.blogspot.com.br/search/label/livro%20Eduem>).

EVANGELISTA, Olinda; FERREIRA, Jaci. Mulheres de outrora, bordados de agora. Maringá, Paraná: EDUEM, 2014. (Imagens disponíveis em: <http://palavrabordada.blogspot.com.br/search/label/Mulheres%20de%20Outrora>)

FRANCO, Blandina; LOLLO, José C.. A menina que falava bordado. São Paulo, SP: Amarilys, 2010.

FRANCO, Blandina; LOLLO, José C.. Este não é um livro de princesas. São Paulo, SP: Peirópolis, 2015.

GALVÃO, Iray. Bolota, uma certa jabuticaba muito esperta. São Paulo, SP: Escrituras, s.d.

GIL, Gilberto. A linha e o linho. Bordado por Marcela Fernandes de Carvalho. Rio de Janeiro, RJ: Escrita Fina, 2013.

GOMES, Lenice. A menina que bordava bilhetes. São Paulo, SP: Cortez, 2008.

JOSÉ, Elias. As horrorosas maravilhosas. São Paulo, SP: DCL, 2009.

MACHADO, Ana Maria. Ponto a ponto. São Paulo, SP: Cia. das Letrinhas, 2006.

MARQUES, Ângela. Memórias de quintal. Juiz de Fora, MG: Franco Editora, s.d..

MELLO, Thiago de. Amazonas: águas, pássaros, seres e milagres. São Paulo, SP: Salamandra, 1998.

NEVES, Marta Cristina Pereira. Um outro pôr-de-sol. São Paulo, SP: Cia. dos Livros, 2002.

RADÜNZ, Dennis. Fábulas de linha e agulha: artes de Maria Celeste. Florianópolis, SC: Nauemblu Ciência & Arte, 2006.

SOMBRA, Fábio. Arara, tucano, bordados no pano. São Paulo, SP: Moderna, s.d..

SOUZA, Angela Leite de. Um verso a cada passo. São Paulo, SP: Autêntica, 2009.

TOLEDO, Andréa P.; CARVALHO, Marcela F. de. Sereiazinha – uma história bordada. Rio de Janeiro, RJ: Escrita Fina, 2013.

TRAVERS, P.L.. Mary Poppins. Bordados de Ronaldo Fraga. São Paulo, SP: Cosac Naify, 2014.

ZIRALDO. Menino do Rio Doce. São Paulo, SP: Cia. das Letrinhas, 1996.